Black Friday todo o ano: polícias em saldo e o ridículo das duas tabelas

Black Friday todo o ano: polícias em saldo e o ridículo das duas tabelas

Apesar do foco ser outro, porque as questões estruturais são determinantes para a nossa ação, não podemos ignorar este assunto, pois é também elucidativo da atualidade.

Chama-se “serviço remunerado”, mas muitas vezes soa a outra coisa: um turno extra imposto, em dia de descanso, para tapar buracos e fazer acontecer eventos – públicos e privados – à custa do tempo, do corpo e da família de quem patrulha a rua. A própria Portaria que regula estes serviços admite o paradoxo: prevê que sejam prestados “fora do horário normal”, mas abre a porta à nomeação “a título excecional” quando não há voluntários e recorda que isto não afasta o “carácter permanente e obrigatório do serviço policial”.

E é aqui que o sistema se torna indecente: quando o “remunerado” deixa de ser escolha e passa a ser dever, o Estado tem a obrigação de pagar de forma simples, transparente e justa. Em vez disso, inventou-se uma anomalia difícil de explicar a qualquer cidadão: duas tabelas para o mesmo trabalho, como se a autoridade, o risco e a responsabilidade variassem conforme a etiqueta administrativa do evento. A ASPP/PSP di-lo sem rodeios: é “inexplicável e inaceitável” haver Tabela A e Tabela B quando “trabalho de polícia é trabalho de polícia”, sobretudo sendo feito nos tempos livres – e sem que os agentes tenham de “patrocinar solidariamente” o que o Estado decide comparticipar.

A Portaria esclarece a lógica da desigualdade: a Tabela B aplica-se, entre outros, a espetáculos desportivos “quando comparticipados” e a competições não profissionais. Traduzindo: quando há comparticipação pública, o valor é... mais baixo. Em 2025, por exemplo, um agente em período de 4 horas (dias úteis 8h–20h) aparece a 44,87 € na Tabela A, mas 31,70 € na Tabela B – para o mesmo polícia, a mesma farda, a mesma rua.

Isto não é “gestão”, é transferir o custo para quem já paga com o próprio descanso.

Depois há o segundo absurdo: a grelha temporal é cega ao significado das horas. Trabalhar numa noite banal e trabalhar na noite de Natal podem cair no mesmo “saco” remuneratório. A ASPP/PSP chama-lhe desajuste “ultrapassado”: um serviço na noite de Natal ou passagem de ano jamais poderia valer o mesmo que um serviço depois das 20h num dia útil qualquer. É o tipo de detalhe que revela muito: quem desenha a tabela conhece o calendário… mas não sente as consequências.

A ASPP/PSP há muito que aponta uma saída razoável: pagar pela “qualidade” das horas, como acontece noutros setores com trabalho por turnos, majorando períodos mais penosos (noite, fins de semana e feriados) e disciplinando a procura para reduzir a tentação de “despachos de exceção” que, na prática, viraram rotina. E não é um capricho: é reconhecer que a disponibilidade permanente não é uma licença para esgotar pessoas – e que o desgaste físico e psicológico, quando acumulado, entra pela porta da saúde mental e sai pela janela da vida familiar.

Em 2025, a própria Assembleia da República recomendou que se aprovasse a proposta de alteração à Portaria dos serviços remunerados. Mas o debate continua aceso: recentemente, foi noticiada uma proposta do Governo para aumentar em 15% estes valores. Há também iniciativas que vingaram para fixar prazos máximos de pagamento (por exemplo, 60 dias após o serviço, pela mão do PCP), porque o risco da cobrança a terceiros não pode cair sobre quem já cumpriu – e o facto de o Estado estar longos meses para pagar os serviços remunerados que são da sua responsabilidade também mostra muito o respeito que o Estado/Governo nutre pelos polícias.

Mas nenhuma percentagem, nem nenhum prazo resolve o núcleo do ridículo enquanto ele permanecer: duas tabelas, uma delas mais baixa, num serviço que pode ser imposto. Se o Estado quer policiamento, tem de o financiar sem truques e sem impor “solidariedade” em horas roubadas ao descanso. 

A farda não pode ser a variável de ajuste do orçamento – muito menos quando é chamada para garantir a segurança de todos.

Paulo Santos, presidente ASPP/PSP

Back to blog